terça-feira, 28 de fevereiro de 2012


A Revolução Copernicana de Kant e a Educação para a Transformação
Daniel R. C. Sena*

Resumo: Este trabalho pretende apresentar os fundamentos da chamada revolução Copernicana na filosofia, segundo o pensamento do filósofo alemão Immanuel Kant . Na tentativa de colocar a metafísica  “no caminho seguro de uma ciência”, Kant propõe uma “mudança de método” na  relação sujeito/objeto, semelhante a que Nicolau Copérnico realizara na astronomia. Para Kant, o sujeito no ato de conhecer coloca no objeto elementos a priori contidos nele mesmo, ou seja,  não é a estrutura cognitiva humana que se molda às coisas, mais as coisas que se moldam à estrutura cognitiva humana.  É possível relacionar esta mudança de método realizada por Immanuel Kant na relação sujeito/objeto com o processo de educação e aprendizagem, propondo a reflexão sobre a questão da passividade do sujeito e sobre a necessidade de uma didática que estimule a emancipação intelectual.
  
No processo de ensino\aprendizagem existe a tendência de que o educando seja visto como uma tabula rasa a ser preenchida por elementos exteriores, ou seja, na aquisição do conhecimento, ele na maioria das vezes é um ente passivo. Esta tendência leva o educando a ser dependente de alguém que lhe ensine. Assim, o tipo de educação que este recebe, além de acentuar sua dependência intelectual, o impede de exercer sua autonomia de pensamento e de construir o próprio conhecimento.
O filosofo alemão Immanuel Kant (1724–1804), no prefacio à segunda edição de sua Critica da Razão Pura propõe uma mudança de método na maneira de se conceber a relação sujeito\objeto, conhecida por Revolução Copernicana na filosofia.
Segundo Kant, a razão não percebe senão aquilo que ela mesma produz segundo o seu próprio projeto, isto é, o sujeito no ato de conhecer coloca no objeto elementos a priori contidos nele mesmo, ou seja, não é a estrutura cognitiva humana que se molda às coisas, mas as coisas que se moldam a esta.
         A investigação kantiana parte da possibilidade de a metafísica poder se dirigir pelo caminho seguro de uma ciência. Kant inicia sua investigação pela exposição de conhecimentos que, para ele, são incontestáveis, e que estão presentes na lógica, na matemática e na ciência da natureza (física), não podendo, no entanto, se dizer o mesmo a respeito da metafísica.
         Segundo Kant, o trajeto percorrido pela Lógica para tornar-se um conhecimento seguro, foi mais fácil que se comparado ao da Matemática e da física, devido às suas próprias limitações, sendo, pois, a lógica “apenas um instrumento para se conhecer as formas e regras gerais do pensamento correto, independente dos conteúdos pensados”.
         Diferente da lógica, o caminho feito pela matemática e pela física para se tornarem um conhecimento seguro foi trilhado de modo distinto, pois na lógica “a razão só se ocupa consigo mesma”, enquanto na matemática e na física existem conhecimentos tanto racionais, quanto objetivos, que apesar de oriundos da razão, fazem menção a objetos.
         A matemática começou “tateando”, mas por meio de construções, baseadas nos próprios conceitos introduzidos e pensados por representações a priori do sujeito, foi possível apreender suas propriedades, ou seja, não foi necessário acrescentar nada à figuras ou formas, mas apenas pensar o que o sujeito pôs segundo seu próprio conceito.
         Com a física, um pouco mais tarde, aconteceu um processo análogo ao ocorrido com a matemática, deu-se conta de que se deveria procurar as leis que regem a natureza, segundo o que a razão existente no próprio sujeito colocava nelas.
         No caso da metafísica, que tem seus objetos totalmente afastados dos dados da experiência sensível, o problema é bem mais complexo. Porém, Kant julgou ser possível resolver esta questão, tendo como exemplo a matemática e a física, pelo fato destas terem logrado êxito em seu objetivo de “dirigir-se pelo caminho seguro de uma ciência”.  Segundo ele, esta “mudança de método” poderia muito bem ser empregada à metafísica.
         Kant nega a chamada metafísica “dogmática” de Leibniz e Wolf, que pretendia chegar à verdades absolutas, como Deus, a alma, o mundo, e outras representações impossíveis de serem atingidas pelos sentidos. Para Kant, só é possível haver conhecimento mediante as intuições sensíveis, combinadas com o entendimento humano.
         Mas isso não significa que Kant descarte a possibilidade da existência de uma metafísica, ela poderá existir sim, como uma especulação das condições universais e necessárias do conhecimento. No final da Critica da Razão Pura, ele a define como sendo “um estudo das formas ou princípios cognitivos, que por serem atributos da razão humana, condicionam todo o saber científico, e possibilitariam um exame dos princípios gerais de toda a ciência”. Desse modo, Kant destrói a chamada metafísica dogmática, a qual, segundo ele, não trazia nenhum progresso para o conhecimento.     
Kant entendeu que sua teoria de como é possível conhecer os objetos, representava uma revolução semelhante a que Nicolau Copérnico havia feito na astronomia. Como se sabe, no sistema geocêntrico, são os astros que giram em torno da terra, esta permanece imóvel. Copérnico sugeriu como forma de tentar dar uma explicação ao movimento dos astros celestes, que, ao invés, fosse a terra que girasse em torno do sol.
         Tal forma de conceber o movimento dos astros, segundo Kant, deveria ser empregada na relação sujeito/objeto. Não é o sujeito imóvel que assiste a manifestação dos objetos, mas o entendimento ativo do sujeito que diz como as coisas são pensadas e vistas. No pensamento Kantiano o sujeito é a autoridade, ele é um “legislador”. Na teoria do conhecimento se costuma chamar esse posicionamento Kantiano de idealismo transcendental, pois o objeto é determinado a priori pela própria natureza da faculdade de conhecer humana. Porém, é preciso ficar claro que esse idealismo kantiano, diferente do que se possa pensar, é algo totalmente voltado para os objetos da intuição, e não um idealismo metafísico.
         É necessário, também, ressaltar um ponto importante sobre a questão Kantiana do sujeito como “legislador”, deve-se entender que este sujeito do conhecimento não é um sujeito individual, o que daria a idéia dessa teoria não passar de um mero psicologismo. Este sujeito não é alguém em particular, ou seja, a capacidade de “ver nas coisas aquilo que colocamos nelas”, é uma capacidade inerente à própria estrutura cognitiva humana, chamado por Kant de sujeito universal ou estrutura a priori da razão humana.
Para Kant, com essa mudança na maneira de pensar “pode-se muito bem explicar a possibilidade de um conhecimento a priori, e, mais ainda, dotar de provas satisfatórias as leis que não se manifestam a priori na natureza, enquanto conjunto dos objetos da experiência”.            
Em teoria do conhecimento, este posicionamento é chamado de idealismo      transcendental, pois o objeto é determinado a priori pela própria natureza da faculdade de conhecer humana. Entretanto, é preciso deixar claro que esse idealismo é voltado para os objetos da intuição, diferente de um "idealismo metafísico", repleto de abstrações, porque, para haver conhecimento é necessário que existam intuições e conceitos, pois “pensamentos sem conteúdo são vazios, intuições sem conceitos são cegas”
É possível relacionar esta mudança de método realizada por Immanuel Kant na relação sujeito/objeto com o processo de educação e aprendizagem, propondo a reflexão sobre a questão da passividade do sujeito e sobre a necessidade de uma didática que estimule a emancipação intelectual.
Apesar de todos os avanços e melhorias, como o maior número de alfabetizados e de escolas e o aumento nos investimentos, é possível constatar que a pratica pedagógica ainda é fundamentada numa concepção bancária de educação, ou seja, o educador é o único detentor do saber, sendo o educando um mero receptáculo que acolhe, memoriza e repete o conteúdo recebido. Essa forma de educação fomenta a acomodação intelectual, pois o educando se acostuma e se ajusta a essa passividade.
O educador brasileiro Paulo Freire chama isso de pedagogia do oprimido, pois há uma adaptação ao mundo conhecido, o mundo da opressão, e sugere que a educação seja realizada como prática da liberdade, que deverá surgir dos próprios oprimidos, onde, além de terem consciência de sua condição, também possam ser agentes ativos no devir da realidade em que vivem, como pessoas autônomas na construção do saber.
Segundo Kant, "a menoridade é a incapacidade de fazer uso do seu entendimento sem a direção de outro individuo", e continua a seguir: a preguiça e a covardia são as causas pelas quais uma tão grande parte dos homens (...) continuem, no entanto de bom grado menores durante toda a vida. A passividade intelectual gera a mediocridade e estabelece a heteronomia, ou seja, o educando se submete a outrem e não exerce sua própria autonomia no pensar e na construção do saber.
Theodor Adorno, pensador alemão, também enfatiza a importância da emancipação do pensamento e corrobora com a visão kantiana a se referir ao “homem autônomo, emancipado”, seguindo a “formulação definitiva de Kant”, isto é, para a “exigência de que os homens tenham que se libertar de sua auto-inculpável menoridade”. O processo de construir o próprio saber constitui o ponto para a saída de sua menoridade e ação autônoma e consciente. Adorno chega a afirmar categoricamente que a educação tem sentido unicamente como educação dirigida a uma auto-reflexão crítica. Pois, através da auto-reflexão critica será possível que a educação ultrapasse os limites da sala de aula e desperte no educando a liberdade intelectual, o engajamento em movimentos sociais e a prática de atitudes socialmente corretas.
 Para a concretização deste processo de emancipação, é preciso enfatizar a importância do educador, pois ele deve contribuir com subsídios teóricos para que o educando, através da experiência e da reflexão, supere este estado de menoridade. Além disso, esse educador deve também saber respeitar e utilizar de maneira positiva os saberes do educando. Este tipo de educação deve ir além da simples introjeção de valores e conteúdos, mas sim,  constituir uma práxis educacional.
A realização deste ideal esbarra numa série de dificuldades como a superlotação das salas de aulas, que dificulta o trabalho pedagógico; os baixos salários que forçam o educador a trabalhar em mais de um horário, e o impedem de preparar melhor o seu conteúdo didático; além da falta de perspectivas para a carreira do magistério básico. Entretanto, a educação aliada aos outros segmentos da sociedade vigente poderá contribuir para uma mudança significativa em nossa sociedade, pois, com a formação de um educando consciente e autônomo, problemas como a criminalidade, a violência ou a proliferação do uso e do trafico de drogas poderiam ser, ao menos, minimizados, e o educador deve ter consciência da extrema importância do seu papel nesta empreitada.  
Essas considerações, portanto, estão bastante próximas da proposta kantiana de uma Revolução Copernicana, que poderia ser aplicada a uma didática para a liberdade do pensar, sendo fomentada pelos educadores, numa práxis didático-pedagógica transformadora.
 * Professor da rede pública municipal de Manaus; professor substituto do Departamento de Filosofia – UFAM; graduado em Filosofia - UFAM e Geografia - UFAM; e Especialista em Filosofia: O Projeto Kantiano da Critica – UFAM.
 BIBLIOGRAFIA
 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 2a Ed.. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
ADORNO, Theodor W. Educação e Emancipação. Trad. : Wolfgang Leo Maar. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1995. 
ANDERY, M. A. P A  et al. Para compreender a ciência: uma perspectiva histórica. 9a . ed.. Rio de Janeiro:  Espaço e Tempo; São Paulo: EDUC, .2000.
 DELEUZE, Gilles. Para ler  Kant. Trad. Sonia Dantas Pinto Guimarães. Rio de Janeiro: F. Alves, 1976. 
FREIRE, Paulo, Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 35. Ed. São Paulo: Paz e Terra. 2007. 
FREIRE, Paulo, Pedagogia do Oprimido. 8 ª Ed: TJ; Paz e Terra. 1980.
 KANT, Immanuel. Critica da Razão Pura. São Paulo: Abril Cultural, 1980.( Os Pensadores)
 KANT, Immanuel, Resposta à pergunta: o que é o esclarecimento? In Kant, Textos seletos. Trad.: Raimundo Vier. 3. edição. Petrópolis, Vozes, 2005.
 PASCAL, Georges. O pensasmento de Kant. 7ª Ed.. Petrópolis: Vozes, 2000.

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