A Revolução Copernicana de Kant e a Educação para a Transformação
Daniel R. C. Sena*
Resumo: Este trabalho pretende apresentar os fundamentos
da chamada revolução Copernicana na filosofia, segundo o pensamento do filósofo
alemão Immanuel Kant . Na tentativa de colocar a metafísica “no caminho
seguro de uma ciência”, Kant propõe uma “mudança de método” na relação
sujeito/objeto, semelhante a que Nicolau Copérnico realizara na astronomia.
Para Kant, o sujeito no ato de conhecer coloca no objeto elementos a priori
contidos nele mesmo, ou seja, não é a estrutura cognitiva humana que se
molda às coisas, mais as coisas que se moldam à estrutura cognitiva
humana. É possível relacionar esta mudança de método realizada por
Immanuel Kant na relação sujeito/objeto com o processo de educação e
aprendizagem, propondo a reflexão sobre a questão da passividade do sujeito e
sobre a necessidade de uma didática que estimule a emancipação intelectual.
No processo de
ensino\aprendizagem existe a tendência de que o educando seja visto como uma tabula
rasa a ser preenchida por elementos exteriores, ou seja, na aquisição do
conhecimento, ele na maioria das vezes é um ente passivo. Esta tendência leva o
educando a ser dependente de alguém que lhe ensine. Assim, o tipo de educação
que este recebe, além de acentuar sua dependência intelectual, o impede de
exercer sua autonomia de pensamento e de construir o próprio conhecimento.
O filosofo alemão Immanuel
Kant (1724–1804), no prefacio à segunda edição de sua Critica da Razão Pura
propõe uma mudança de método na maneira de se conceber a relação
sujeito\objeto, conhecida por Revolução Copernicana na filosofia.
Segundo Kant, a razão
não percebe senão aquilo que ela mesma produz segundo o seu próprio projeto, isto
é, o sujeito no ato de conhecer coloca no objeto elementos a priori contidos
nele mesmo, ou seja, não é a estrutura cognitiva humana que se molda às coisas,
mas as coisas que se moldam a esta.
A investigação kantiana parte da possibilidade de a metafísica poder se dirigir
pelo caminho seguro de uma ciência. Kant inicia sua investigação pela exposição
de conhecimentos que, para ele, são incontestáveis, e que estão presentes na
lógica, na matemática e na ciência da natureza (física), não podendo, no
entanto, se dizer o mesmo a respeito da metafísica.
Segundo Kant, o trajeto percorrido pela Lógica para tornar-se um conhecimento
seguro, foi mais fácil que se comparado ao da Matemática e da física, devido às
suas próprias limitações, sendo, pois, a lógica “apenas um instrumento para se
conhecer as formas e regras gerais do pensamento correto, independente dos
conteúdos pensados”.
Diferente da lógica, o caminho feito pela matemática e pela física para se
tornarem um conhecimento seguro foi trilhado de modo distinto, pois na lógica
“a razão só se ocupa consigo mesma”, enquanto na matemática e na física existem
conhecimentos tanto racionais, quanto objetivos, que apesar de oriundos da
razão, fazem menção a objetos.
A matemática começou “tateando”, mas por meio de construções, baseadas nos
próprios conceitos introduzidos e pensados por representações a priori
do sujeito, foi possível apreender suas propriedades, ou seja, não foi
necessário acrescentar nada à figuras ou formas, mas apenas pensar o que o
sujeito pôs segundo seu próprio conceito.
Com a física, um pouco mais tarde, aconteceu um processo análogo ao ocorrido
com a matemática, deu-se conta de que se deveria procurar as leis que regem a
natureza, segundo o que a razão existente no próprio sujeito colocava nelas.
No caso da metafísica, que tem seus objetos totalmente afastados dos dados da
experiência sensível, o problema é bem mais complexo. Porém, Kant julgou ser
possível resolver esta questão, tendo como exemplo a matemática e a física,
pelo fato destas terem logrado êxito em seu objetivo de “dirigir-se pelo
caminho seguro de uma ciência”. Segundo ele, esta “mudança de método”
poderia muito bem ser empregada à metafísica.
Kant nega a chamada metafísica “dogmática” de Leibniz e Wolf, que pretendia
chegar à verdades absolutas, como Deus, a alma, o mundo, e outras
representações impossíveis de serem atingidas pelos sentidos. Para Kant, só é
possível haver conhecimento mediante as intuições sensíveis, combinadas com o entendimento
humano.
Mas isso não significa que Kant descarte a possibilidade da existência de uma
metafísica, ela poderá existir sim, como uma especulação das condições
universais e necessárias do conhecimento. No final da Critica da Razão Pura, ele
a define como sendo “um estudo das formas ou princípios cognitivos, que por
serem atributos da razão humana, condicionam todo o saber científico, e
possibilitariam um exame dos princípios gerais de toda a ciência”. Desse modo,
Kant destrói a chamada metafísica dogmática, a qual, segundo ele, não trazia
nenhum progresso para o conhecimento.
Kant entendeu
que sua teoria de como é possível conhecer os objetos, representava uma
revolução semelhante a que Nicolau Copérnico havia feito na astronomia. Como se
sabe, no sistema geocêntrico, são os astros que giram em torno da terra, esta
permanece imóvel. Copérnico sugeriu como forma de tentar dar uma explicação ao
movimento dos astros celestes, que, ao invés, fosse a terra que girasse em
torno do sol.
Tal forma de conceber o movimento dos astros, segundo Kant, deveria ser
empregada na relação sujeito/objeto. Não é o sujeito imóvel que assiste a
manifestação dos objetos, mas o entendimento ativo do sujeito que diz como as
coisas são pensadas e vistas. No pensamento Kantiano o sujeito é a autoridade,
ele é um “legislador”. Na teoria do conhecimento se costuma chamar esse
posicionamento Kantiano de idealismo transcendental, pois o objeto é
determinado a priori pela própria natureza da faculdade de conhecer
humana. Porém, é preciso ficar claro que esse idealismo kantiano, diferente do
que se possa pensar, é algo totalmente voltado para os objetos da intuição, e
não um idealismo metafísico.
É necessário, também, ressaltar um ponto importante sobre a questão Kantiana do
sujeito como “legislador”, deve-se entender que este sujeito do conhecimento
não é um sujeito individual, o que daria a idéia dessa teoria não passar de um
mero psicologismo. Este sujeito não é alguém em particular, ou seja, a capacidade
de “ver nas coisas aquilo que colocamos nelas”, é uma capacidade inerente à
própria estrutura cognitiva humana, chamado por Kant de sujeito universal ou
estrutura a priori da razão humana.
Para Kant, com
essa mudança na maneira de pensar “pode-se muito bem explicar a possibilidade
de um conhecimento a priori, e, mais ainda, dotar de provas
satisfatórias as leis que não se manifestam a priori na natureza,
enquanto conjunto dos objetos da experiência”.
Em
teoria do conhecimento, este posicionamento é chamado de idealismo
transcendental, pois o objeto é determinado a priori pela própria
natureza da faculdade de conhecer humana. Entretanto, é preciso deixar claro
que esse idealismo é voltado para os objetos da intuição, diferente de um
"idealismo metafísico", repleto de abstrações, porque, para haver
conhecimento é necessário que existam intuições e conceitos, pois “pensamentos
sem conteúdo são vazios, intuições sem conceitos são cegas”.
É possível relacionar esta
mudança de método realizada por Immanuel Kant na relação sujeito/objeto com o
processo de educação e aprendizagem, propondo a reflexão sobre a questão da
passividade do sujeito e sobre a necessidade de uma didática que estimule a
emancipação intelectual.
Apesar
de todos os avanços e melhorias, como o maior número de alfabetizados e de
escolas e o aumento nos investimentos, é possível constatar que a pratica
pedagógica ainda é fundamentada numa concepção bancária de educação, ou seja, o
educador é o único detentor do saber, sendo o educando um mero receptáculo que
acolhe, memoriza e repete o conteúdo recebido. Essa forma de educação fomenta a
acomodação intelectual, pois o educando se acostuma e se ajusta a essa
passividade.
O
educador brasileiro Paulo Freire chama isso de pedagogia do oprimido, pois há
uma adaptação ao mundo conhecido, o mundo da opressão, e sugere que a educação
seja realizada como prática da liberdade, que deverá surgir dos próprios
oprimidos, onde, além de terem consciência de sua condição, também possam ser
agentes ativos no devir da realidade em que vivem, como pessoas autônomas na
construção do saber.
Segundo
Kant, "a menoridade é a incapacidade de fazer uso do seu entendimento
sem a direção de outro individuo", e continua a seguir: a preguiça
e a covardia são as causas pelas quais uma tão grande parte dos homens (...)
continuem, no entanto de bom grado menores durante toda a vida. A
passividade intelectual gera a mediocridade e estabelece a heteronomia, ou
seja, o educando se submete a outrem e não exerce sua própria autonomia no
pensar e na construção do saber.
Theodor
Adorno, pensador alemão, também enfatiza a importância da emancipação do
pensamento e corrobora com a visão kantiana a se referir ao “homem autônomo,
emancipado”, seguindo a “formulação definitiva de Kant”, isto é, para a
“exigência de que os homens tenham que se libertar de sua auto-inculpável
menoridade”. O processo de construir o próprio saber constitui o ponto para
a saída de sua menoridade e ação autônoma e consciente. Adorno chega a afirmar categoricamente
que a educação tem sentido unicamente como educação dirigida a uma
auto-reflexão crítica. Pois, através da auto-reflexão critica será possível
que a educação ultrapasse os limites da sala de aula e desperte no educando a
liberdade intelectual, o engajamento em movimentos sociais e a prática de
atitudes socialmente corretas.
Para
a concretização deste processo de emancipação, é preciso enfatizar a
importância do educador, pois ele deve contribuir com subsídios teóricos para
que o educando, através da experiência e da reflexão, supere este estado de
menoridade. Além disso, esse educador deve também saber respeitar e utilizar de
maneira positiva os saberes do educando. Este tipo de educação deve ir além da
simples introjeção de valores e conteúdos, mas sim, constituir uma práxis
educacional.
A
realização deste ideal esbarra numa série de dificuldades como a superlotação
das salas de aulas, que dificulta o trabalho pedagógico; os baixos salários que
forçam o educador a trabalhar em mais de um horário, e o impedem de preparar
melhor o seu conteúdo didático; além da falta de perspectivas para a carreira
do magistério básico. Entretanto, a educação aliada aos outros segmentos da
sociedade vigente poderá contribuir para uma mudança significativa em nossa
sociedade, pois, com a formação de um educando consciente e autônomo, problemas
como a criminalidade, a violência ou a proliferação do uso e do trafico de
drogas poderiam ser, ao menos, minimizados, e o educador deve ter consciência
da extrema importância do seu papel nesta empreitada.
Essas
considerações, portanto, estão bastante próximas da proposta kantiana de uma Revolução
Copernicana, que poderia ser aplicada a uma didática para a liberdade do
pensar, sendo fomentada pelos educadores, numa práxis didático-pedagógica
transformadora.
* Professor da rede pública
municipal de Manaus; professor substituto do Departamento de Filosofia – UFAM;
graduado em Filosofia - UFAM e Geografia - UFAM; e Especialista em Filosofia: O
Projeto Kantiano da Critica – UFAM.
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